O DIABO ESTÁ NOS DETALHES Anotações de Alison Escrito por Alison Entrekin em 1 de outubro de 20
- maribeltradutora
- 9 de nov. de 2014
- 6 min de leitura
A primeira vez que tive que fazer uma tradução consecutiva, estava olhando para uma faca na mão de um ladrão. A faca tinha um cabo cor de rosa e a mão do ladrão tremia. Eu tinha acabado de levar um amigo gringo para tirar dinheiro num caixa eletrônico e o assaltante deve ter nos seguido. Quando entramos numa rua menos movimentada, ele abordou meu amigo, que, como todo inglês que se preza, parou e olhou para ele educadamente, decerto achando que ia perguntar as horas. Parei uns metros adiante e, quando virei, vi o ladrão apontando a faca para o inglês. Tudo aconteceu em câmara lenta: o inglês deixou cair a lata de Coca-cola que vinha bebendo, o ladrão disse: “passa a carteira, rápido, rápido!” e o gringo jogou as mãos para o alto e ficou olhando para a cara dele. “Passa a carteira, porra!” gritou o ladrão, e foi quando me caiu a ficha de que meu amigo não estava entendendo nada. “Give him your wallet…” gaguejei, sem tirar os olhos da faca, e de repente o inglês percebeu que não eram as horas que o homem queria.
A segunda vez que tive contato com a tradução ao vivo (feita com muito mais jogo de cintura) foi alguns meses depois, quando o inglês definitivamente não era mais bem-vindo na minha casa. Era um hóspede folgado, que deixava as coisas espalhadas pela sala, passava horas no banheiro, e se servia da geladeira sem a menor cerimônia e sem contribuir para nada. A única vez em que se coçou para fazer alguma coisa, botou um bolo de roupas de todas as cores na máquina, com o passaporte junto, e quando fui tirar as roupas, estavam manchadas, com algumas letrinhas douradas aqui e ali. Achei “Kingdo” na perna de uma calça. Mas a gota d’água foi quando eu e meu ex-marido descobrimos que ele estava dormindo pelado na sala sem fechar a persiana à noite. Resolvemos ajudá-lo a procurar outro lugar para morar.
Encontramos uma senhora que alugava um quarto com vista para o mar, de preferência para estudantes de medicina. Depois de inspecionar o quarto e apartamento, o gringo virou para a dona da casa e perguntou em inglês se ela tinha uma panela wok. Foi quando meu ex entrou em ação:
– Ele quer saber se pode usar o microondas para esquentar água para o chá.
– Sim, pode – disse a senhora, provavelmente imaginando agradáveis chás da tarde na varanda com seu novo hóspede.
– Posso usar a banheira? – perguntou o inglês.
– Ele quer saber se tem água quente no chuveiro – disse meu ex.
– Mas é claro! – respondeu a velhinha.
– Posso usar a máquina de lavar quando quiser?
– Ele quer saber se é para pagar adiantado.
– Por favor!
Eu não sabia onde enfiar a cara, ora para esconder a vergonha que devia estar estampada no meu rosto, ora para disfarçar os risos que mal conseguia conter quando meu ex “traduzia” as perguntas do inglês. Não sabia que ele tinha esse dom – não para a tradução em si, porque não foi nada disso, mas para pensar tão rapidamente no que o outro queria ouvir e manter duas conversas paralelas, tudo na maior calma.
Anos depois, quando fiz um curso de tradução que contemplava, além da parte escrita, a tradução consecutiva e a simultânea, de cabine, lembrei-me desses episódios e da minha absoluta incapacidade de pensar rapidamente. Talvez por isso, nunca quis fazer nenhum tipo de tradução na hora. Assim que você abre a boca, as palavras estão no ar, ecoando no ouvido das pessoas, sem chance de você pegar de volta e arrumar.
Sou lenta em tudo. Numa briga, as minhas melhores respostas – aquelas que acabam com o argumento do outro – vêm dias depois. Leio devagar, traduzo devagar, e penso em soluções devagar. Se me perguntar assim, de cara, como é que se traduz isso ou aquilo, por mais banal que seja, alego que teria que ver no contexto e mudo de assunto. Assim, de cara, não faço a menor ideia.
Por outro lado, sempre que começo uma tradução, não vejo a hora de começar a revisão. É aí que me delicio com o texto e que procuro, uma por uma, as melhores soluções. No rascunho, solto a intuição e vou traduzindo sem me deter muito nas coisas, mais em piloto automático do que conscientemente. O inconsciente é incrivelmente eficaz na hora de dar o tom ou encontrar a voz do narrador ou dos personagens, mas eu gosto mesmo é de trabalhar com a razão, na revisão.
A primeira revisão é com a tela do computador dividida, com o original e a tradução lado a lado, e me dá um prazer imenso pegar e corrigir algum deslize que cometi no rascunho, ou achar uma palavra melhor para uma determinada coisa.
Depois disso, quando o texto é muito difícil ou as dúvidas muito bestas, consulto a minha advogada do diabo, Daniela. A Dani se formou comigo e não faz tradução simultânea ou consecutiva pelas mesmas razões que eu – é obsessiva e neurótica ao extremo. Conheço a Dani há tantos anos que me sinto perfeitamente à vontade expondo para ela as minhas dúvidas mais esdrúxulas do português. Assim, eu me poupo de passar vergonha perguntando coisas idiotas para o autor.
Geralmente sobram coisas para perguntar para o autor de qualquer jeito, e costumo começar as sessões me desculpando pelas perguntas bestas que vou fazer. Porque a tradução literária é assim: você senta com um texto – sempre aparentemente mais fácil do que de fato é – e, na hora de traduzir, aquelas linhas retas começam a se bifurcar, abrindo-se num leque de sentidos e possibilidades que não aparecem numa simples leitura. E, quase sempre, ao responder às perguntas, os autores se surpreendem, dizendo que nunca tinham pensado nisso ou naquilo. Não precisavam, escrevendo em português, mas na hora de passar para outra língua as respostas se tornam cruciais.
Muitas vezes, as dúvidas não têm nada a ver com o sentido das palavras, mas com alguma coisa de ordem lógica. “Como é a fachada desse prédio? Preciso de mais informações para escolher a palavra certa.” “É possível fazer café numa chaleira?” Diversas vezes pedi para o autor dar sobrenomes aos personagens porque, a rigor, não usamos Mr ou Mrs com o primeiro nome em inglês.
Outras vezes, não tenho ideia mesmo do significado das palavras. Em Cidade de Deus, do Paulo Lins, uma personagem pergunta a outra: “Você já fez carrossel? Saca-rolha? Trenzinho? Funil? Dedinho? Meia nove? Tapadinho? Enrola-enrola? Entupidinho? Suga-suga?” Eu sabia que pelo menos uma das posições sexuais nesta lista existia, portanto achei que as outras também deviam existir… Passei horas revirando a internet, entrando em sites de sacanagem, tentando descobrir o que eram aquelas posições, para depois pesquisar os nomes correspondentes em inglês – e nada! Finalmente, morrendo de vergonha, sentindo-me a pessoa mais desatualizada do mundo, fui perguntar para o Paulo, que caiu na gargalhada e disse: “Inventei!”
É comum ficar horas atrás de algum detalhe, como no exemplo acima. Quando estava traduzindo A chave de casa, da Tatiana Salem Levy, fiquei um tempão na pista de “descarinho” – não a palavra em português, mas uma palavra transliterada do ladino (a língua dos judeus sefarditas, que o avô – o da autora e o do livro – falava), que seria uma espécie de saudade. Na internet, só achei citações do próprio livro que estava traduzindo. Passei horas vasculhando glossários e dicionários de ladino online, e imaginei que a palavra tivesse outra grafia. A Tatiana também não sabia a grafia original e tinha simplesmente registrado em seu português de hoje aquilo que seus antepassados falavam. Chegamos a cogitar manter a grafia do jeito que aparece no original, em itálico. A verdade é que não teria mudado muita coisa, já que a palavra é explicada no texto, mas cismei com aquilo e não conseguia dar por terminado o assunto comigo mesma. Mais tarde, lembrei-me de uma frase inteira em ladino que aparece em outra parte do livro, que a Tatiana tinha copiado de uma fonte confiável. As palavras pareciam espanholas, só que repletas de “k’s” e “y’s”, e de repente me deu um estalo. Comecei a jogar “descarinho” na internet brincando com as letras até chegar na combinação “deskarinyo”, que rendeu alguns resultados nas páginas de busca e, se não é a grafia certa, é pelo menos uma transliteração mais plausível para o inglês.
Resolvidas as pendências, gosto de deixar o livro esfriar, para depois revisar mais algumas vezes em inglês, agora atenta para o ritmo e naturalidade (ou falta dela, dependendo do caso) do texto em tradução. Leio trechos em voz alta, me debruço sobre dicionários de sinônimos, elimino cacofonias e repetições indesejadas, e várias coisas vão se encaixando como peças de um quebra-cabeça. Às vezes me dou ao luxo de fazer uma revisão olhando somente a pontuação, ou, se ainda estou me descabelando com alguma coisa, mando para amigos gringos para ver se eles também notam aquilo que está me incomodando.
O texto parece ter vida e identidade próprias agora e são estes momentos finais de que mais gosto, lambendo a cria antes de soltar no mundo – o que definitivamente não é possível na tradução simultânea ou consecutiva. E eu não troco esse meu processo lento por nada.
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
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