E O SOTAQUE TEM UM EXU, MEU DEUS DO CÉU? Escrito por Alison Entrekin em 5 de novembro de 2014
- maribeltradutora
- 9 de dez. de 2014
- 6 min de leitura

“Não há terras estrangeiras; apenas o viajante é estrangeiro.”
– Robert Louis Stevenson
Uma das coisas mais almejadas por aquele que se radica em outro país é a habilidade para falar o novo idioma sem sotaque; poder andar por aí sem ter que se preocupar com uma vogal mais fechada ou um acento trocado que o denuncie como gringo e, como consequência, o leve a dar explicações sobre como e por que veio parar aqui, se gosta, se não gosta, se tem saudades de lá, etc. Ainda me lembro da vez que entrei numa loja para ver não sei o quê, e a balconista, depois das perguntas obrigatórias, gritou para o fundo da loja: “Mãe, tem uma australiana na loja, vem ver!” Sei que faz parte da curiosidade natural das pessoas, e até acho simpático na maioria das vezes, mas passado um tempo o estrangeiro se cansa de ser estrangeiro e quer mais é sumir na multidão, seguir sua vida sem ser forçado a ter a mesma conversa todos os dias como no filme Feitiço do tempo.
Hoje, falo o português brasileiro com pouco sotaque – ou melhor, alguns acham que ele persiste, outros acham que não. De qualquer maneira, é sutil o suficiente para que eu seja encarada como apenas mais uma na fila da padaria, mas a grande ironia é que não me livrei nem um pouco da sina de ter que me preocupar o tempo todo com sotaque, só que agora na direção inversa e talvez não da forma que as pessoas imaginam.
A partir do momento que um livro escrito no Brasil viaja para o exterior, não é mais literatura nacional, e sim literatura estrangeira. Um livro brasileiro em Portugal tem sotaque brasileiro, tal como um livro português aqui tem sotaque português. Mas não existe um sotaque brasileiro no inglês (a não ser na boca dos brasileiros que falam inglês com sotaque, mas não é disso que estou falando). O que quero dizer é que não há um “inglês brasileiro” oficial, como existe o inglês neozelandês, ou o inglês queniano. A literatura que viaja necessariamente adota a língua e o sotaque de seu país de chegada, ou do tradutor, que podem ou não ser a mesma coisa.
Embora seja uma dúvida que surge no começo de quase todas as minhas traduções, um livro foi mais encrencado que os outros: Cidade de Deus, do Paulo Lins, que foi publicado quase simultaneamente na Inglaterra e nos EUA com a mesma tradução. Loucura, não? Como é que se traduz um livro tão brasileiro, escrito num registro tão coloquial, salpicado por gírias, um quase-dialeto do português carioca dos anos 60, 70 e 80, para qualquer outra língua, quanto mais para duas (porque embora não sejam línguas diferentes, o inglês britânico e o inglês americano têm feições bastante diferentes)?
É claro que existem lugares nesses dois países onde as pessoas falam de um jeito bem coloquial, salpicado por gírias, num quase-dialeto mais ou menos parecido com o português de Cidade de Deus, mas teria sido um equívoco empregar um sotaque desses na tradução. Se, por exemplo, eu tivesse escolhido a fala típica do Bronx, de Nova York (que provavelmente nem seria capaz de reproduzir), o leitor teria a impressão de que a história se passa no Bronx, e não numa favela do Brasil. Se tivesse optado pela fala típica do East End de Londres (que também dificilmente conseguiria reproduzir), o leitor teria a impressão de que a história se passa em Londres, em vez de numa favela no Brasil. Seria como traduzir um livro cheio de gírias para publicação simultânea no Brasil e em Portugal. Não adianta: quanto mais coloquial a linguagem, mais arraigada a um lugar e época específicos.
A verdade é que as pessoas querem ler o livro sem sotaque (o que significa dizer no sotaque delas). Querem uma prosa que permita saborear a história que se passa num lugar diferente, mas não querem que a língua interfira com a leitura, chamando atenção para o fato de estarem lendo uma tradução. E esse é, na maioria dos casos, o desejo máximo do tradutor também. Um desejo lindo, utópico – e impossível quando se trata de um livro como Cidade de Deus.
De um ponto de vista puramente prático, faz sentido que as editoras de países onde se fala a mesma língua unam forças para pagar uma única tradução, em vez de uma para cada país, ainda mais no mercado conservador da língua inglesa, onde se publicam poucos livros em tradução. Faz sentido e muitas vezes não há problema. Em livros com narradores mais eruditos, como é o caso de Budapeste e Leite derramado, do Chico Buarque, ou O filho eterno, do Cristovão Tezza, uma única tradução viaja de um país para o outro com relativa tranqüilidade, pois lá em cima, nos registros mais altos, o inglês de um país e de outro são muito parecidos. No máximo, os editores mudam a grafia e uma expressão ou outra, e o livro segue para a gráfica.
A esta altura, devem estar se perguntando, que raios ela fez, então, com Cidade de Deus? Como é que se satisfaz ingleses e americanos ao mesmo tempo num linguajar tão coloquial? Devo dizer desde já que não há como, a não ser que se faça uma tradução para cada país, ou, pensando bem, uma tradução para cada região de cada país, porque as gírias e o jeito de falar são diferentes de região para região. E, por que não, seguindo essa mesma lógica, ter múltiplas traduções para metrópoles como Nova York e Londres, já que as gírias e o jeito de falar são diferentes de bairro para bairro? O fato é que há um sem fim de possíveis traduções e sotaques para um livro como Cidade de Deus.
E eu fui a desavisada que topou fazer uma só tradução. O que eu fiz foi o seguinte: como meu contrato foi com a Bloomsbury, na Inglaterra, conversei com a Liz Calder e concordamos que eu iria procurar ao máximo evitar dialetos existentes, usando gírias e expressões mais universais quando possível, e, quando impossível, optando pelo inglês britânico. Depois haveria uma revisão nos Estados Unidos para adequar as gírias ao ouvido deles.
Talvez tenha sido uma vantagem ser australiana nessa hora, alguém fora do eixo Estados Unidos—Inglaterra, sem sotaque americano ou britânico na escrita, ou talvez não tenha feito diferença alguma. Sei que muitas vezes, ao longo da tradução, preferi usar uma palavra de vocabulário comum, que não era gíria, no lugar de uma gíria conhecida. Conforme o leitor vai lendo, vai se acostumando com a nova terminologia, sem que esta soe “emprestada” de outro lugar, como de fato acontece quando se lê o original em português.
Em determinado momento, no meio do caminho, o editor que estava acompanhando a tradução me disse que eu deveria reescrever tudo no inglês americano, porque, segundo ele, se o brasileiro falasse inglês, seria o inglês americano (por estar nas Américas?). Achei problemático (sem falar do trabalho de refazer tudo), mas por sorte ele acabou mudando de editora e outra pessoa entrou no lugar dele.
Terminei a tradução, numa espécie de inglês britânico-tentando-ser-neutro (o que definitivamente não existe), e o livro seguiu para a editora americana, onde mexeram muito pouco e saiu assim mesmo.
Apesar de tudo, o livro teve uma recepção crítica boa nos dois lados do Atlântico, com alguns comentários inevitáveis sobre sotaque (um detectou um quê de hiphop, outro de cockney – nenhum dos quais falo ou sou capaz de escrever). Mas como já sabia que era uma missão impossível, fiquei feliz que o livro conquistou leitores apesar deste obstáculo incomensurável. Até onde sei, ainda vende.
Aprendi uma grande lição com isso, e agora faço uma campanha mais ativa para que os editores realmente adaptem os textos para seus diferentes públicos quando o registro é muito baixo. Não adianta só mexer na grafia.
E comemoro quando não tenho que me preocupar com isso. Recentemente, traduzindo Azul-Corvo, da Adriana Lisboa, para publicação – para variar – na Inglaterra e nos Estados Unidos, respirei aliviada quando me caiu a ficha de que a protagonista, uma brasileira criada nos Estados Unidos a partir dos treze anos de idade, só podia falar e escrever no inglês americano. Portanto, eu não tinha que me desdobrar para agradar gregos e troianos: podia fazer a tradução para o inglês americano, independentemente do país de publicação. (Não que o livro seja super coloquial, nem recheado de gírias, mas quando tive que escolher entre termos diferentes, podia usar sempre o americano.) Foi uma alegria.
Por outro lado, também recentemente, traduzi um trecho do segundo romance de Paulo Lins, Desde que o samba é samba, e não é que tive a felicidade de topar com um exu? Que sotaque tem um exu, meu deus do céu? Acho que fiquei dois dias inteiros me descabelando com um trecho de três parágrafos, tentando evitar que o exu soasse jamaicano… e depois mandei para os amigos gringos para colher impressões sobre o sotaque do exu. A gramática podia ser bizarra (não copiei a do português, inventei outra), mas o exu não podia soar inglês nem americano, nem australiano, nem nada. Tinha que ter sotaque de exu e só.
Morro de inveja dos meus colegas brasileiros, que têm o privilégio de poder traduzir para um único país!
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
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