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É assim e…vírgula! Os ajustes necessários para que o leitor estrangeiro tenha uma experiência de le

  • maribeltradutora
  • 5 de jan. de 2015
  • 4 min de leitura

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Uma das coisas que mais me deixam descabelada nas traduções é a pontuação. Não deveria, a rigor, já que as regras de pontuação em inglês e português são quase iguais em muitos aspectos. Mas os usos e costumes não são, e é aí que vivo meu tormento particular.

Muitos dos autores brasileiros que traduzi têm o hábito de juntar com vírgulas o que – pela norma culta – provavelmente seriam frases individuais, como se fossem orações de uma frase maior. Isto é, colocam uma vírgula onde poderia ter um ponto final. E o leitor brasileiro lê essas frases com a maior serenidade.

Teoricamente, se as regras são iguais, a quebra das mesmas deveria ser mantida na tradução, certo? Cheguei à conclusão de que não necessariamente – o que vem a ser conclusão nenhuma. Quando essas frases são traduzidas para o inglês mantendo a mesma pontuação ficam muito esquisitas, como se o leitor passasse por cima de uma lombada quadrada toda vez que chega a uma dessas junções tão invisíveis no português.

O que fazer com isso na tradução? Primeiro, é preciso descobrir se o autor rompeu com as regras propositalmente, para criar algum efeito, ou se foi uma escolha inconsciente, seguindo o fluxo de alguma gramática interna. Segundo, é importante avaliar o impacto no leitor, independentemente da intenção do autor.

Agora um dado surpreendente: quando questionados, a maioria dos meus autores diz que não tem como projeto subverter as regras gramaticais, ou causar estranhamento. Ao contrário, muitos acreditam que as vírgulas dão maior fluidez ao texto.

A primeira vez que me vi numa queda de braço com a pontuação foi na tradução de Budapeste, do Chico Buarque. Eu amo esse livro, então imagine meu espanto quando vi aquelas frases tão delicadamente costuradas no português dando coice e pinoteando em inglês. Substituía as vírgulas por outras coisas (ponto, ponto e vírgula, travessão, inversão) e de repente a rebelião amainava. Devolvia as vírgulas e o rodeio recomeçava. Passei dias tirando e pondo vírgulas: na segunda-feira achava que tudo bem, podia deixar; na terça achava que de jeito nenhum, tinha que tirar; já na quarta, achava melhor mudar de profissão. Tive pesadelos com vírgulas, bolava teses mirabolantes sobre elas e cheguei a questionar minha saúde mental quando me vi dando um sermão para meu antúrio de estimação, cujas folhas, vistas de perfil, lembram vírgulas. Será que tudo isso era coisa da minha cabeça? Fiquei tão encucada com aquilo que resolvi mandar algumas páginas da tradução, com a pontuação original, para três amigas gringas – boas leitoras, cultas, cabeça aberta, com costume de ler livros em tradução – com as seguintes instruções:

1) grifar qualquer coisa que achar estranho no texto; e,

2) caso houver, dar uma nota de 1 a 10 indicando o grau de estranhamento.

Fiquei aliviada ao descobrir que não era da minha cabeça. As amigas acharam aqueles sinaizinhos gráficos muito mal-comportados e deram notas de estranhamento de 8 a 10. Segundo elas, tiveram que parar e voltar nas frases várias vezes para encontrar o sentido. Mas o mais interessante foi que repeti a experiência com brasileiros, com as mesmas instruções, e não assinalaram uma vírgula sequer!

Não é curioso que aquilo que cria fluidez numa língua não o faz necessariamente em outra? Algo análogo a ir para um país estrangeiro, que tem as mesmas regras de trânsito, só que é para parar no sinal verde e ir no vermelho. (*Lembre: não estou falando de todas as vírgulas, apenas aquelas que tomam o lugar de pontos finais.)

Fui reler O outono do patriarca, do Gabriel García Márquez, traduzido para o inglês pelo célebre Gregory Rabassa, que tem frases longas de varias páginas, mas vi que, apesar de enormes, as frases tinham uma gramática convencional em todos os outros aspectos e, portanto, não eram difíceis de acompanhar. Em momento algum tive que voltar na frase para verificar se tinha perdido algo. Também procurei as traduções para o inglês de livros do Saramago, feitas pela incrível Margaret Jull Costa, nas quais a tradutora mantém a pontuação original, e cheguei à conclusão de que a pontuação idiossincrática do Prêmio Nobel português – declaradamente proposital – oferece o mesmo grau de dificuldade para o leitor de língua inglesa. Concordei com a decisão da Jull Costa de não mexer na pontuação.

Mas meu caso não era bem assim. Depois de conversar com o autor, fazer várias enquetes com amigos gringos e produzir 37 versões do mesmo texto, optei por uma abordagem heterogênea. Em alguns momentos do livro, aquelas frases costuradas umas nas outras com vírgulas refletiam o estado interior do narrador, José Costa, em seus momentos mais delirantes. Nestes lugares, as vírgulas não chegavam a causar o mesmo estranhamento em inglês que causavam nas partes menos tumultuadas, quando o narrador estava mais seguro de si; portanto não mexi na pontuação. Em outros trechos, onde o estranhamento era grande e chegava a desviar a atenção da história, o jeito era quebrar algumas frases, introduzir alguns pontos finais, fazer inversões para evitar alguma vírgula, ou usar conjunções para ligar as partes. Cada caso, um caso.

Veja bem: não gosto de facilitar o texto, deixando tudo mastigadinho para o leitor da tradução (e bato o pé com os editores quando sugerem mudanças desse tipo), mas também não creio que um livro traduzido deva ser mais difícil do que o original, e procuro fazer os ajustes necessários para que o leitor estrangeiro tenha uma experiência de leitura parecida com a do leitor do original, para que prove as mesmas sensações, ria e chore nos mesmos lugares. Nada mais, nada menos.

No caso de Budapeste, o que eu não queria fazer de jeito nenhum era categoricamente substituir todas as vírgulas por pontos, dando um ritmo completamente outro a uma escrita singular, com voz e ritmo muito próprios. Tampouco achei certo manter a pontuação ipsis litteris, por medo de ser acusada de irresponsabilidade virgulatória – ou coisa que o valha – e permitir que o texto em tradução ficasse com uma cara “experimental” demais, quando isso não era a intenção do autor, nem o efeito do original.

Curiosamente, tenho notado menos desse tipo de pontuação nos livros dos jovens autores que venho lendo e traduzindo ultimamente. Será um fenômeno geracional? Não sei. O jeito é continuar observando por mais alguns anos.

Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.


 
 
 

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