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Minhas palavras Anotações de Alison Escrito por Alison Entrekin em 20 de janeiro de 2015

  • maribeltradutora
  • 16 de fev. de 2015
  • 4 min de leitura

Escrevo esta coluna da minha terra, onde estou passando férias com o meu marido e nossa filha de três anos. Depois de duas semanas aqui, eu me sinto como se nunca tivesse falado português na vida. Parece que não só tenho uma batata na boca, como também na cabeça, na hora de pensar em português. E, como estou estranhando absolutamente tudo, resolvi falar justamente sobre meus idiomas, minhas palavras. Esta não é exatamente uma coluna sobre tradução literária, mas, como tradução é língua, e língua é vida, é uma coluna sobre a matéria-prima da tradução.

Eu comecei a aprender o português em 1996, com 27 anos, alguns meses antes de aterrissar no Brasil. Antes disso, para mim, o português era uma língua exótica, falada em lugares longínquos — distante de mim e da minha realidade. Eu nunca tinha lido um livro brasileiro, mas havia comprado um CD do Sérgio Mendes, encantada pelo som da língua. Entendia lhufas. Mas cismei que não queria chegar no país sem falar nada, então me empenhei para aprender tudo que podia no pouco tempo que tinha, que eram dois meses. Tive aulas com uma paraibana uma vez por semana, passei todo o tempo livre estudando o material da aula (tirado de um livro didático muito antigo), e assisti religiosamente à novela brasileiraFelicidade, que estava passando num canal local, com um caderno aberto ao lado e um lápis na mão. Aprendi que a Maitê Proença era linda.

No Brasil, fui aprendendo na marra. A maioria das pessoas era generosa e esperava pacientemente enquanto eu montava as frases, exceto nos bares. Adorava conversar com a minha ex-cunhada porque ela falava devagar por natureza, e eu entendia tudo o que dizia. Outra amiga, Ana Maria, falava alto comigo e gesticulava muito, até que alguém comentou que eu era gringa, não surda. Assisti a O rei do gado. Para me lembrar da palavra “almofada”, tinha que juntar “almoço” e “fada”. A palavra “almoxarifado” era “almoço” + “xerife” + “aquela música portuguesa”. Descobri que não há espaço no meu cérebro para ambas as palavras “alcaparra” e caper (alcaparra em inglês). Eu me lembro de uma ou de outra, nunca as duas, e depois procuro a tradução no dicionário. Cometi as gafes mais vergonhosas da face da terra. Não posso voltar nunca a Dunas de Itaúnas, ES, por medo de ser reconhecida por um garçom que me trazia copo após copo de cachaça que tinha sido envelhecida num coco enterrado. Certa altura, tentando explicar para ele que não queria beber mais porque “estava mole” e precisava tirar uma soneca, acho que, sem querer, convidei-o para ir para a cama. A primeira vez que alguém fez aquele gesto com a mão de “anda! rápido!”, achei que tinha sido picado por uma vespa. Depois mergulhei na rica linguagem de sinais e gestos que acompanham a fala brasileira. Hoje, se amarrar minha mãos, não consigo falar. Me desdobrei para aprender a colocar os acentos nos lugares certos e fiquei aborrecida quando meus esforços foram por água abaixo com a última reforma ortográfica. Em retaliação, pretendo continuar escrevendo idéia com acento até o final da vida. Se ficar sem, é porque o editor mudou.

Quem já trocou de língua dentro de um relacionamento sabe como é esquisito. Mas quem persiste sabe que o estranhamento não dura. Depois de 8 anos de relacionamento em português, nasceu a Isabela e eu e meu marido resolvemos fazer justamente isso. Não só passamos a falar com a Isabela em inglês, como passamos a falar em inglês na frente dela. O raciocínio era: se o João falasse com ela em português, e eu falasse com ele em português, que língua iríamos falar na mesa de jantar? O português ia dominar, sem dúvida. Para manter o equilíbrio, reformulamos tudo. Criamos uma zona de inglês dentro de casa e deixamos o português por conta do mundo fora de casa. Isso significa que o João fala com a filha apenas em inglês, sendo que a língua nativa dos dois é o português. É incrível ver os dois batendo papo em inglês, ele com seu sotaque levemente americanizado, ela com seu sotaque australiano, mas rolando os erres como uma boa brasileira.

Nunca insistimos que ela falasse inglês ou português. Ela fala do jeito que prefere conosco, e nós respondemos em inglês. Corrigimos o que é necessário nas duas línguas e fornecemos as palavras que lhe faltam, mas mantemos o foco no inglês. Só lemos para ela em inglês. Mesmo com os livros infantis brasileiros, faço uma tradução “ao vivo”. Ela volta da escolinha falando português, mas no final de semana pende mais para o inglês. Aqui, na Austrália, está falando cada vez mais inglês, e hoje à tarde me perguntou por que os avós daqui não falam português e por que as amiguinhas no Brasil não falam inglês (já que, para ela, é tão natural).

Em meio a esse vaivém de línguas, parece meio óbvio que eu me tornaria tradutora, mas nem sempre foi tão óbvio. Dei aulas de inglês durante meus primeiros anos no Brasil, mas já na primeira aula, quando a classe inteira de adolescentes desenhou pintos nos cadernos, tive a sensação de estar no lugar errado. Foi só alguns anos depois que me deu um estalo e pensei que talvez… talvez pudesse juntar minha paixão antiga pela escrita (tinha feito faculdade de criação literária aqui na Austrália) com a paixão recente pelo português, e fazer do casamento uma nova profissão. Fiz o curso de tradução na Associação Alumni, em São Paulo, com o único objetivo de me tornar tradutora literária, e comecei a me enveredar pela literatura brasileira, que até então desconhecia.

No começo da carreira, sentia que estava traduzindo textos em preto e branco, que ganhavam cores à medida que os passava para o inglês. Mas de uns dez anos para cá, percebo que isso mudou. Agora sinto o texto em português de forma diferente. É mais colorido, mais vivo.

A profissão caiu como uma luva. Sou obsessiva e detalhista, atributos irritantes na convivência, mas extremamente úteis no trabalho de tradutor. O trabalho acaba sendo uma meditação para mim. Depois de um dia brincando e brigando com as palavras, durmo em paz.

Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.


 
 
 

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