Por traduções mais crocantes
- Escrito por Alison Entrekin em 12 de março de 2015
- 25 de mar. de 2015
- 6 min de leitura

O começo de carreira do tradutor literário é complicado. Ninguém o conhece e construir uma clientela fiel leva tempo. E ainda assim é uma clientela diferente da do tradutor técnico ou jurídico, cujos clientes batem na sua porta com mais freqüência, pedindo traduções mais ou menos parecidas com as últimas. O cliente do tradutor literário, porém, não volta toda hora — mesmo quando o tradutor já tem um nome consolidado no mercado — porque a produção literária é mais espaçada e as traduções são apenas encomendadas quando há a possibilidade de publicação no exterior. Para ter o mesmo volume de trabalho que os outros, o tradutor literário independente tem que se virar, e muitas vezes precisa intercalar as traduções com outras atividades. Os trabalhos vêm pingando ao poucos, pelo boca a boca — o fulano que o indicou para beltrano, que repassou o contato para sicrano, que nunca o viu mais gordo. E é aí que mora o perigo.
Sem referências claras sobre o trabalho do tradutor, é natural que o cliente se sinta inseguro com relação à qualidade da tradução. Ele deve tirar dúvidas sim, e até fazer eventuais correções, mas — penso eu — se contratou alguém para fazer algo que ele mesmo não se sente apto a fazer, como é que vai dar pitacos editoriais sobre o texto final, principalmente sobre questões pertinentes à língua estrangeira? E, se é realmente necessário fazer tantas correções assim, eu diria que escolheu o tradutor errado.
O ideal é que se certifique da qualificação do tradutor antes de contratá-lo, pedindo mais informações da pessoa que o indicou, ou solicitando o currículo do tradutor e/ou exemplos de seu trabalho. Também pode pesquisar na internet. Mas, com freqüência, o cliente não se dá esse trabalho e liga logo para o tradutor, começando a conversa assim: “Quem me deu teu nome foi o beltrano… Você ainda está mexendo com tradução?” Assim mesmo: MEXENDO COM. Como se de uma hora para a outra a pessoa fosse parar de “mexer com” tradução e começar a “mexer com” outra coisa. Imagino que a pessoa que realmente “mexe com” tradução deva responder: “Sim, mandaí que eu faço. É sobre o quê mesmo?” Depois, quando o cliente estiver lendo a tradução e começar a duvidar de cada palavra usada, ele vai xingar o tradutor sem nunca perceber que a culpa pode ser dele por ter contratado alguém que “mexe com” tradução. Esse é o cenário do cliente inseguro e o tradutor incompetente. Eu chamo este último de “mexe com”.
Mas existe outro cenário que é quase o contrário do descrito acima: o do tradutor competente e o cliente sabe-tudo. Este tipicamente morou alguns anos fora do país, o que o torna automaticamente um perito em tudo sobre a língua estrangeira. O sabe-tudo tem por certo que todo tradutor é um “mexe com”. Faz questão de ligar no telefone fixo do tradutor e insiste em falar em inglês (ou a língua que for) com quem quer que atenda, mesmo que seja a sogra ou um cuidador de idosos. Tem algo a dizer sobre cada aspecto da tradução e quer brigar sobre o uso correto de preposições (ele adora between e odeiain). O sabe-tudo não se aguenta, precisa mostrar que sabe mais que o tradutor, que é, afinal, uma espécie de processador de palavras, sem sensibilidade para perceber as nuances de seu texto. E o pobre tradutor só percebe com quem está lidando quando já é tarde demais.
Foi mais ou menos assim que travei contato com o Ilustríssimo. Usava o nome de músicos famosos como cartão de visita e se declarava íntimo dos que ele chamava de “a intelectualidade brasileira”. A tradução que ele pediu era pequena, coisa de duas ou três páginas, um release de seu novo trabalho. Era uma época corrida para mim e combinamos que eu ia entregar no final da semana seguinte. Mas o Ilustríssimo não se continha e ligava diariamente para perguntar se eu já tinha lido o texto dele e o que eu achava. E, quando ligava, falava sem parar, me custando pelo menos meia hora de trabalho a cada ligação. Deixei de atender o celular quando via o número dele no visor. Mas o infeliz tinha o número do meu fixo e começou a ligar nele, cinco, seis, sete vezes por dia. Quando eu não atendia o fixo também, ele passou a ligar de números desconhecidos. Parei de atender qualquer ligação com o prefixo 21. Só não o mandei tomar banho por respeito à pessoa que tinha me indicado a ele. E eu nem tinha começado o trabalho. O pior ainda estava por vir.
Quando entreguei as duas ou três páginas da tradução, respirei aliviada, achando que estava finalmente livre do chato. Ledo engano. No dia seguinte descobri que eu — mero processador de palavras que sou — tinha feito uma lambança da tradução, sem perceber a genialidade de seu lindo release. E o Ilustríssimo queria discutir cada detalhe, por telefone. Estava disposto a brigar até a morte para provar que at age five é melhor que at the age of five, e nonetheless é melhor quenevertheless, entre outras coisas. Depois me disse, em inglês, que eram exemplos de como a minha tradução poderia ter sido crispier. Acho que quis dizer crisper, sem o segundo “i”, o que seria “mais conciso”, mas crispier com o “i” — “mais crocante” — era infinitamente melhor! Gaguejei no telefone, tentando abafar uma gargalhada enquanto imaginava a tradução no forno, ficando crispier.
Pensei numa resposta irônica, mas o prazer de esfregar crispier na cara dele não valia as horas e horas de trabalho que eu ia perder numa discussão. Além do mais, ele não tinha me pagado, e embora o dinheiro não fosse muito, estava determinada a receber cada centavo, pelo princípio. Ninguém merecia tanto aborrecimento de graça.
Pois o Ilustríssimo também não se achava merecedor de tanto aborrecimento. Mandou o texto traduzido para um amigo, nativo, como fez questão de frisar. O amigo o revisou, trocando seis por meia dúzia e meia dúzia por seis. Era de outro país, tinha outro jeito de falar e de escrever. Mudou tudo para o jeito dele. E o Ilustríssimo me enviou o texto “corrigido”. Ele não enxergava as mudanças como preferências pessoais — eram provas concretas da minha incompetência. Perguntei ao Ilustríssimo por que ele não tinha pedido para o amigo fazer a tradução. E a resposta foi que o amigo não era tradutor profissional. Meu deus, pensei, se não é profissional como é que você confiou nele para corrigir o texto da tradutora profissional que contratou? Mas essa lógica não passou por sua cabeça. Continuou querendo discutir pontuação, preposições e artigos, e os ritmos que os mesmos impunham ao texto, coisas que só ele — é claro — seria capaz de perceber. Finalmente, semanas depois, ele se deu por satisfeito com o texto filho-de-Frankenstein que tinha criado a partir de trechos da minha tradução e recortes do texto “corrigido” do amigo — com alguns floreios de autoria própria. A esta altura, eu já estava concordando com qualquer sugestão que fazia, para me ver livre dele. Fiz as últimas mudanças que ele tinha pedido e apertei “enviar”.
Cinco minutos depois, chega um email dele gritando:
— MALDIÇÃO! PELO AMOR DE DEUS TIRE ESTE NÚMERO DO MEU TEXTO JÁ!
Não entendi nada.
— Que número? — devolvi.
— O NÚMERO 13 QUE APARECE AÍ!
Olhei para o anexo e foi quando percebi que o arquivo tinha exatamente 13 kb.
O Ilustríssimo foi um divisor de águas para mim. A partir de então, passei a cobrar 50% do valor da tradução adiantado, para que o cliente divida comigo o risco. Ele corre o risco de eu não entregar ou de entregar uma tradução insatisfatória. E eu corro o risco de ele não me pagar ou de descobrir que é um psicopata. O Ilustríssimo, por exemplo, pagou com 3 meses de atraso. Evito atender pessoas que perguntam se eu “mexo com” tradução ou revisar as traduções de outros.
Espero, com todo o meu coração, que os sabe-tudos e os “mexe cons” da vida se encontrem, porque foram feitos uns para os outros. E que os autores legais e respeitosos encontrem tradutores competentes e atenciosos. E que todas as traduções, literárias ou não, sejam um pouco mais crocantes, por que não?
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
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