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Minha mala sem alça Tradução, perfeccionismo e cumplicidade Escrito por Alison Entrekin em 19 de m

  • maribeltradutora
  • 25 de jun. de 2015
  • 4 min de leitura

Ela é minha cabeça ao avesso, tudo que eu queria ser e não sou. Ela me completa. É papagaio de pirata, empoleirado no meu ombro, me censurando, e, doula paciente, ajudando nos partos mais dolorosos, ano após ano. Quando a chamo de “chata”, ela acha graça. “Mala sem alça”, praticamente chora. Porque, para nós, tradutoras literárias, são as atribuições mais elogiosas imagináveis. A gente se orgulha de ser cricri.

Conheci minha advogada do diabo anos atrás, no curso de tradução da Associação Alumni, em São Paulo. A primeira vez que a vi, estava toda de preto, com unhas azul-cintilante, meia-calça roxa comprada em Londres (escutei ela contando para outra pessoa), e uma improvável queimadura solar vermelho-camarão encobrindo a brancura paulistana habitual. Um dia, ela me deu carona para a pensão onde eu dormia quando estava em São Paulo, decidimos então ir a um bar próximo para continuar o papo. A dose se repetiu nas noites de aula seguintes, e a conversa nunca mais teve fim. Vibrávamos com as mesmas coisas, geralmente de ordem linguística. Nos cafezinhos entre aulas, trocávamos artigos sobre teoria de tradução e nos divertíamos cotejando textos originais e traduzidos para achar pistas que entregavam a direção da tradução.

Um dia, resolvi traduzir alguns contos da escritora goiana Augusta Faro, para enviar para algumas publicações no exterior. Se quisesse ingressar no mercado editorial, imaginava, era preciso ter currículo, coisas traduzidas e publicadas, para depois conseguir, quem sabe, que alguém me pedisse a tradução de um livro. Pedi para a Daniela ser minha revisora/consultora. Deu muito certo. Eu mandava os contos para ela com as dúvidas assinaladas e ela devolvia com explicações, contextos e empurrões em outras direções. O que mais me encantava era a sua maneira de lançar luz sobre as partes mais encrencadas do texto sem insistir nesta ou naquela solução. É claro que, quando lhe ocorria alguma coisa óbvia, falava, mas a maior parte do tempo ela me contava uma historinha que me levava a enxergar aquilo de forma diferente, ou sugeria que eu investigasse tal sinônimo ou “algo nessa linha”.

Mas ela não parava por ali. Também olhava as coisas que não tinha pedido para olhar, e quando via algo que a incomodava, falava. Foi aí que descobri, com muita alegria, que ela era muito chata. As nossas conversas, sempre à noite, por ela ser uma criatura noturna (sem falar que as ligações interurbanas eram menos caras – ainda não existia o Skype), eram um verdadeiro cabo de guerra entre línguas e culturas. Discutíamos acepções, impressões e associações por horas a fio. Desligávamos só para beber água e ir ao banheiro, e em seguida retomávamos a conversa. Às vezes, ficávamos um tempão em silêncio, cada uma metida num dicionário de sinônimos. E aquilo era maravilhoso.

Era tão maravilhoso que fiquei esperta: quando ficava ligeiramente em dúvida sobre alguma coisa, mas não muito, eu passei a não grifar nada. Ela é tão obsessiva que, se eu grifava algo, era capaz de cismar sobre aquilo por dias a fio até chegar a alguma conclusão, ou cismar sem fim. Mas se eu não grifava, ela só chamava minha atenção àquilo que realmente a incomodava. E, como o taco dela é tão bom, eu queria aproveitar sua reação espontânea, em vez de eu ir lá plantar uma semente de dúvida numa mente já pra lá de surtada.

Depois vieram os livros. Não pude trabalhar com ela em todos, mas em todos os mais difíceis trabalhei (Cidade de Deus, O filho eterno, Perto do coração selvagem, entre outros). Quando é assim, e sei que vou alugá-la um monte, pago alguma coisa – sempre menos do que ela merece, mas proporcional ao que eu ganho. E quando sei que só vou alugá-la um pouquinho, lá vou eu pedir ajuda fiado, e a gente pendura na conta de um futuro hipotético em que todos os profissionais do livro ganham bem e as contas são acertadas da forma mais justa.

Quando ela viaja ou quando, às quintas-feiras, a faxineira dela está passando o aspirador e não dá para conversar, é um sofrimento. Mas, depois de tantos anos de convivência, se eu começar a elaborar minhas dúvidas para ela num email, às vezes consigo até escutar sua voz me dizendo para olhar em outra direção, e encontro a solução.

Bem que ela me disse que seu masterplan era me viciar. Já tentei me livrar dela, sem sucesso. Nas vezes que tentei tirar dúvidas com pessoas “normais”, tive que dar tanto contexto para que a pessoa compreendesse a dúvida, para depois ouvir um “acho que sim” ou “acho que não” ou “sei lá, nunca pensei nisso”, que desisti. Com ela, meia palavra basta. Às vezes nem isso. Às vezes basta grifar uma palavra ou frase e ela já sabe por que estou surtando, porque sabe como penso. E essa economia de tempo e palavras não tem preço. Adoro não ter que me explicar. Até chegamos a desenvolver uma espécie de taquigrafia para encurtar ainda mais as palavras necessárias para chegar a um entendimento. VDB, por exemplo, significa o “valor do bonitinho”, quando a graça ou fofura da palavra é tão ou mais importante que o significado. “Superornou” é o mais alto elogio. E um suspiro ao telefone pode ser uma de duas coisas: ou a tradução está péssima, ou ela nem sabe por onde começar a responder a dúvida. De qualquer maneira, significa que estou frita.

Alguns anos atrás, ela deixou de trabalhar como tradutora em tempo integral porque estava deprimida com o mercado e as baixas perspectivas. Por ser perfeccionista, ela não consegue entregar um texto perfeito em menos tempo do que o necessário, o que acaba esbarrando nos prazos geralmente apertados que as editoras impõem. E como ela é muito cricri, imagine quão perfeito tem que ser! Só que, de forma geral, o mercado não remunera pelo perfeccionismo e o tempo gasto para chegar lá, e sim por lauda, ou por palavra, o que realmente torna a sobrevivência do tradutor perfeccionista problemática (falo por experiência própria). Foi fazer outras coisas da vida, mas nunca conseguiu largar de vez a tradução. E eu continuo batendo na porta dela toda hora, por hábito, por vício, por amor. Porque ela estava lá na gênese de tudo. Porque sem ela não dá.

Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.


 
 
 

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