Churrasco de gringos Anotações de Alison
- Escrito por Alison Entrekin em 23 de junho de 2015
- 14 de jul. de 2015
- 5 min de leitura
Outro dia fui convidada pelo whatsapp para um “churrasco de gringos”. O convite veio da amiga de uma amiga, que explicou que queria reunir todos os gringos da cidade no tal churrasco. Não a conheço pessoalmente e ficou evidente que o único critério para a convocação era minha gringuice. Tudo bem, a nossa amiga em comum deve ter falado de mim, mas algo me incomodou mesmo assim. Entendo quem se reúne com os compatriotas para manter contato com as raízes, o idioma, a comida, a música, como também entendo a curiosidade natural de conhecer pessoas de outros lugares, mas, nesse caso, não parecia nem uma coisa nem outra. Parecia que os convidados só tinham que ser de fora e ponto.
Brinquei com meu marido que eu não sabia se deveria me preocupar mais com o canibalismo ou a xenofobia, e até cogitei mandar uma resposta malcriada perguntando se ele e minha filha eram convidados também, uma vez que são brasileiros, mas deixei pra lá. Vai ver que o negócio era apenas a vontade inocente de uma imigrante de conhecer outras pessoas de fora para que ela própria não se sentisse um peixe tão fora d’água. Seja como for, estranhei o convite e, depois de algumas horas, agradeci a gentileza mas disse que tinha outros compromissos naquele dia.
O assunto ficou rondando meus pensamentos. Verdade seja dita, já não me sinto tão gringa, mas também não me sinto exatamente brasileira. O fato é que não me sinto nada – no tumulto da vida cotidiana, chego a esquecer de onde sou. Apenas sou. Tampouco ando apenas com gringos. Mas nos primeiros anos no Brasil, tenho que reconhecer, não era assim. As amigas mais próximas eram todas estrangeiras, de diversas nacionalidades (canadense, mexicana, inglesa, libanesa). Não que eu procurasse me cercar de estrangeiras, mas era com elas que eu tinha algo muito importante em comum: todas nós, voluntariamente ou não, tínhamos sido transplantadas da terra natal. E – apesar de gostarmos muito do Brasil – cada uma tinha suas dificuldades pessoais com a cultura daqui, na qual ainda não nos sentíamos perfeitamente em casa (com exceção talvez da libanesa, que veio para cá criança, com a família).
Ao mesmo tempo, tive um convívio social intenso com brasileiros, amigos do meu ex, e era uma turma gente boa pra caramba, mas mesmo assim o negócio era complicado. Eu não tinha preparo físico para as noitadas, e meu fôlego para acompanhar as conversas – sobre o que já falei aqui – tinha prazo de validade de mais ou menos uma hora. Depois disso, eu boiava. Sempre fui extrovertida lá na Austrália, animada, arroz de festa, mas aqui, no começo, não. Apesar de conseguir arranhar uma conversa e ter uma troca legal de vez em quando, ainda não dominava a língua a ponto de poder ser eu mesma em português. Parte da minha personalidade ficava suprimida. Me sentia um fantasma boa parte do tempo, desnorteada e exausta de tanto prestar atenção. E assim, desnorteada e exausta, eu pegava no sono em todas as festas, todas as mesas de bar, ouvia conversas pela metade, e boiava… Assim é difícil se aprofundar nas relações, não é? Demorei uns bons anos para ter amigas brasileiras de verdade. Mas um dia, depois de vários anos, notei que eu tinha mais amigas brasileiras do que estrangeiras, e percebi que havia caído o véu da estrangeirice. As trocas com as brasileiras eram mais olhos-nos-olhos, sem rótulos de nacionalidade. A minha realidade e a delas tinha se fundido um pouco; dividíamos as mesmas preocupações e alegrias.
Há um ano, mais ou menos, circulou na internet uma lista de queixas do Brasil feita por um americano. Vi diversas pessoas comentando o caso, ultrajadas, dizendo que o cara era um imbecil e que devia voltar para o país dele. Ele havia mexido com o brio delas, como se suas criticas constituíssem um ataque pessoal. Obviamente, não ajudou em nada ele ter usado a palavra “odeio” tantas vezes (um jeito garantido de pisar no calo das pessoas), mas lá nesse caldeirão de ódio e incompreensão também tinha coisas válidas – coisas das quais muitos brasileiros se queixam. Aliás, hoje mesmo li o depoimento de um brasileiro radicado no Japão que fala das mesmas coisas, quase tim-tim por tim-tim, só que sem ódio e escrito com muita sensibilidade. Fiquei me perguntando se parte do problema não era o fato de o americano não ter, na opinião das pessoas ultrajadas, o direito de fazer críticas. Veja bem, não estou querendo defender o infeliz, mas a verdade é que existem essas barreiras não-declaradas e permissões subentendidas, do tipo “eu posso reclamar da minha mãe, mas você não!” – e isso em qualquer país.
Tive certa pena do cara. A idéia de fazer a lista tinha sido imbecil, publicar na internet mais ainda, mas o que eu escutei era um grito de infelicidade de alguém completamente alienado, que havia atravessado a fronteira física do país mas se encontrava preso numa espécie de alfândega cultural. Estava claro que não tinha conseguido se entender com o país ao ponto de poder enxergar as belezas daqui, muito menos deixar que elas compensassem suas perdas (entre elas a falta de variedade de refeições de micro-ondas – sem dúvida o item mais engraçado da lista).
Mas já ouvi listas de queixas parecidas feitas por brasileiros no exterior (a começar pela falta de arroz e feijão), as quais não devem ser muito diferentes das listas de queixas de imigrantes em qualquer lugar do mundo. Porque mudar de país é entrar em conflito com o mundo e consigo mesmo. É descobrir que o mapa-múndi que você carrega consigo desde a infância está errado e você não está mais no centro dele. É difícil pra dedéu se enredar por outra cultura e assimilar as diferenças. Você não só precisa aprender a falar o idioma, como também a compreender as pessoas no seu contexto – e uma coisa não leva necessariamente à outra. Algumas pessoas não têm a inteligência cultural para tanto (acredito nisso), da mesma forma que certas pessoas não têm jeito para a matemática, outras para negócios. Tem gente que não consegue se adaptar e, depois de alguns anos, arruma as malas e vai embora. Outros ficam, mas sentem-se eternamente do lado de fora e procuram sua tribo na alteridade, quem sabe em churrascos de gringos.
Quando recusei o convite para o churrasco, me vi claramente do lado de cá, tomando as dores imaginárias dos brasileiros não convidados, e novamente me pus a refletir sobre a longa transição do lado de fora para o lado de dentro.
Ainda tenho vários amigos estrangeiros, como também tenho muitos amigos brasileiros, mas o critério para a amizade é a pessoa e seus interesses, não a nacionalidade. Volta e meia alguém traz um estrangeiro meio perdido para me conhecer, como quem dissesse: “Olha esta planta que deu certo neste solo”.
Me caiu a ficha que todas aquelas amigas mais antigas – a canadense, a mexicana, a inglesa e a libanesa – ainda estão aqui, e de bem com a vida. Será que, inconscientemente, eu tinha escolhido as mais adaptáveis, as que “dariam certo”, para serem minhas companhias?
A tradução literária é um convite permanente para ir e vir entre culturas. O tradutor precisa se colocar no lugar de um, depois outro, pensar como um, depois como outro, num vaivém constante – não pode parar de um lado só. Penso que é uma dádiva poder vestir diferentes línguas, pontos de vista, e até mesmo preconceitos, para despi-los em seguida. Talvez por isso eu não tenha simpatizado com o “churrasco de gringos”, por imaginar uma espécie de purgatório, onde as pessoas são menos livres, mais presas em estereótipos nacionais. Ou será preconceito meu?
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.
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